Texto longo, mas vale a pena ler.
Fonte: Esporte e Sociedade, Ano 2, número 4, Nov2006/Fev2007
http://www.lazer.eefd.ufrj.br/espsoc/
No tempo da Charanga
(Apontamentos biográficos de Jaime de Carvalho, pioneiro na criação de torcidas
organizadasno Brasil, revelam como a música foi levada para os estádios de futebol).
Bernardo Borges Buarque de Hollanda
Melba Fernanda da Silva
“ – Flamengo, Flamengo/ Tua glória é lutar/ Flamengo, Flamengo/ Campeão de terra e mar.”. Com esse refrão adaptado do hino oficial do clube, a Charanga saudou por quase cinqüenta anos ininterruptos a entrada de seu time em campo. Seja nos famosos alçapões do subúrbio, com suas precárias arquibancadas de madeira, seja no maior estádio do mundo, o Maracanã, com sua engenhosa armação de concreto, a pequena orquestra musical fez-se presente com seus instrumentos de percussão, de metal e de sopro, movida pela devoção ao clube, mas também pelos dez contos de réis e pela caninha oferecida a seus componentes nos intervalos dos jogos. À sua frente, Jaime Rodrigues de Carvalho, um anônimo funcionário público de baixo-escalão, que no decorrer das décadas iria adquirir projeção nacional e internacional como chefe de torcida do Flamengo e da Seleção Brasileira.
Natural de Salvador, nascido a nove de dezembro de 1911, Jaime de Carvalho desembarcou de um ita – meio de transporte maritimo que levava cargas e passageiros do Norte ao Sul do Brasil – no Rio de Janeiro, capital da República, no ano de 1927 e na mesma semana foi assistir a uma partida de futebol nas Laranjeiras, no estádio do Fluminense Football Club. Sua simpatia inicial pela equipe tricolor foi frustrada na semana seguinte quando, ao término de um treino, foi à sede social do clube conhecer as dependências da antiga propriedade da família Guinle – detentora de um conjunto arquitetonico de residencias naquela região da cidade –, com seus vitrais imponentes e com seu estilo art nouveau, encontrando no entanto os portões fechados. Impedido de entrar, deu meia-volta e se dirigiu logo em frente, à rua Paissandu, onde então se localizava o campo do Flamengo, time formado após uma dissidência no Fluminense. Como os jogadores treinavam em uma área aberta ao público, a proximidade dos atletas com a legião de curiosos que se aglomerava ao redor do gramado para ver a preparação dos ídolos Benigno, Hélcio e Moderato, conquistou o fervor de Jaime.
Cinco anos depois de instalado no Rio, período em que teve de pular o muro, pedir dinheiro ou simplesmente carregar a chuteira dos atletas para não ficar de fora dos jogos, Jaime de Carvalho conseguiu um emprego modesto, porém estável, como servidor público no Ministério da Justiça, o que lhe permitiria casar-se com uma portuguesa, dona Laura, e ao longo da vida ter uma freqüência assídua às partidas. Tal ocupação possibilitou também que se tornasse sócio do clube em 1936, época em que o Flamengo, ao transferir-se para o bairro da Gávea, realizou uma intensa campanha para expandir seu número de associados – de setecentos para dez mil – e contratou grandes craques, como Fausto, Domingos da Guia e Leônidas da Silva, que deram visibilidade nacional ao time, em disputas transmitidas pelas rádios do Distrito Federal para boa parte do território brasileiro. Jaime iniciou aí uma estreita amizade com os diretores do clube, passou a viver com intensidade seu cotidiano e, apreciador das regatas, chegou a ser remador até 1947.
A idéia de levar um grupo musical para dentro de um estadio ocorreu na véspera da partida decisiva do Campeonato Carioca de 1942. Naquele sábado anterior à final, Jaime e um amigo esperaram até de noite para conseguir a única bandeira do Flamengo existente na cidade, hasteada no mastro da sede do clube. Depois ficaram até de madrugada a tingir um morim – tecido de algodão, branco e fino – de vermelho e preto com a inscrição: “Avante, Flamengo!”. Na manhã seguinte, no dia onze de outubro, Jaime chegou cedo ao estádio da rua Álvaro Chaves para a disputa contra o Fluminense em companhia de cerca de quinze músicos, portando um trombone, dois clarins e mais dez instrumentos rítmicos. A presença daquela turma ruidosa instalada nas arquibancadas causou espanto, pois até aquele momento a música só fazia parte das comemorações fora do estádio, ora nos cafés ora nas ruas, com os desfiles de carro a imitar os corsos do carnaval.
A estréia do grupo foi considerada um sucesso, com a obtenção do almejado título pelo clube. Jaime levou adiante a iniciativa inédita e a banda passou a acompanhar o time com regularidade aonde quer que ele fosse. De início a presença do grupo pareceu bizarra, a ponto de fazer Ari Barroso declarar em seu programa na Rádio Tupi: “ – Me desculpem, mas isso não é banda nem aqui nem no caixa-prego”. A duvidosa qualidade sonora do grupo deu origem ao apelido gaiato de charanga, – junção de músicos desafinados e sem ritmo – cunhado pelo excêntrico compositor e locutor esportivo. Apesar da crítica jocosa, a declaração de Ari Barroso divulgou a existência da orquestra, que se tornou conhecida na cidade e fez o epíteto pejorativo ser adotado como oficial pelos próprios integrantes.
Em 1943, a Charanga enfrentaria resistências por parte do meio esportivo. Isto porque a tal desafinação revelou-se um recurso estratégico não só para prestar apoio ao Flamengo como sobretudo para atrapalhar a concentração dos adversários. À exceção de São Januário, a maioria dos estádios da época era de pequeno ou médio porte, sem ultrapassar a capacidade de quinze mil espectadores. Na maioria deles, havia uma área destinada ao público que ficava muito próxima do gramado, a chamada Geral, a permitir a comunicação direta entre torcedores e jogadores, sendo constantes até as invasões de campo. Por isto a Charanga colocou-se de forma intencional atrás do gol onde atacava o clube e as marchinhas executadas, mais do que distrair, irritavam o goleiro rival. Em um jogo contra o São Cristóvão, no momento em que o Flamengo meteu o seu quarto gol, o arqueiro do time da zona norte perdeu a paciência e foi reclamar com o juiz acerca da presença inoportuna da torcida naquele lugar. O árbitro ordenou a retirada imediata do local e o caso terminou na justiça desportiva, desencadeando calorosa polêmica. Além de impugnar a partida, alguns dirigentes queriam banir a orquestra em definitivo. Para os adversários, aquela bossa de grupos musicais nos estádios do Rio “era a maior chatice descoberta pelo homem”.
A proibição requerida por cartolas, juízes e jogadores não foi atendida pelo presidente da Federação Metropolitana de Futebol. Vargas Neto considerava a música uma novidade surgida de maneira espontânea nas praças de esporte e devia ser vista em seus aspectos positivos. Ela contribuía para atenuar as brigas entre os torcedores e inibia as palavras de baixo-calão ouvidas com cada vez mais constância durante as partidas. Sobrinho de Getúlio Vargas, a autoridade-mor da liga carioca era também cronista do Jornal dos Sports e partilhava os mesmos princípios de seu diretor Mário Filho, jornalista dedicado desde a década de 1930 à promoção das escolas de samba e do futebol profissional na cidade como verdadeiros espetáculos de massa. Para eventos de tal monta era necessária a constituição de um público participativo, que assistisse às competições de maneira festiva, sem arroubos ou excessos de conduta.
Rechaçada por uns, apreciada por outros, a música deixou aos poucos de ser um fato pitoresco e incorporou-se ao cenário dos estádios. A difusa excitação de uma partida de futebol – dos aplausos, apupos e assovios até o primeiro coro de hip-hip-hurrah! – era agora coordenada por uma sonoridade mais forte e intensa. Marchinhas carnavalescas mesclavam-se aos solenes hinos dos clubes, que persistiriam até meados do século, quando as versões criadas por compositores como Lamartine Babo e Lupicínio Rodrigues seriam popularizadas pelas rádios. A Charanga assimilava também o ritual de corporações centenárias como a banda da Polícia Militar, a banda dos Fuzileiros Navais e a banda do Corpo de Bombeiros, de onde sairiam inúmeros músicos populares. Os hinos davam uma conotação épica às partidas, associavam a identidade dos clubes à exaltação da pátria e vinculavam certos valores militares aos princípios esportivos liberais forjados no final do século XIX.
A inovação sonora era seguida ainda pela inovação visual. De uso restrito aos atletas, as camisas dos clubes passam a ser confeccionadas de modo artesanal pela Charanga. Ao escudo do clube, adiciona-se o símbolo de uma lira na camisa, expressão das afinidades entre a música e o futebol. Um grupo compacto começa a destacar-se da massa. Em substituição às fitas e aos lenços coloridos abanados pelo público feminino durante os jogos, de onde provém a raiz da palavra torcedor – o ato de torcer os lenços com aflição durante um lance decisivo –, os uniformes transformavam-se no elemento de identificação dos torcedores de cada clube. Se a indumentária dos espectadores de futebol até então não se distinguia da vestimenta das elegantes platéias de teatro, cinema e ópera, com o habitual terno e gravata, a camisa uniformizada vem a despertar a atenção não mais apenas no campo. Em um setor especifico, às vezes separado por um cordão de isolamento, as torcidas organizadas são convocadas a comparecer por rádios e jornais em número de até mil integrantes. O aparecimento da Charanga inseria-se nesse contexto de expansão dos esportes e de alteração da condição inicial da assistência – palavra com que a imprensa designava o publico dos estádios, por equivalência à idéia de audiência, utilizada em concertos e outros espetáculos. As torcidas assumiam um caráter ativo nas disputas, seja a encorajar seus times seja a intimidar seus oponentes. Em meio a críticas e incentivos, o agrupamento de Jaime afirmou-se nos três primeiros anos de existência, graças também aos sucessivos triunfos do time no campeonato, que se sagrou pela primeira vez tricampeão carioca. No ano de 1944, em uma final na Gávea superlotada, Jaime levou uma bomba de fabricação caseira para competir com a imensa quantidade de fogos preparados pelos torcedores do Vasco da Gama, que naquele ano criaram também sua torcida, a TOV, fundada por Aida de Almeida e um grupo de amigas. Os fogos de artifício eram uma recente invenção pirotécnica nos estádios e, no inicio do jogo, produziram de forma surpreendente uma cortina de fumaça que encobriu a visão do campo por alguns minutos. Após o contestado gol de Valido nos minutos finais do jogo, Jaime comandou a euforia à saída, sob o improviso de um bloco que percorreu diversos pontos da cidade.
A construção do Estádio Municipal do Rio de Janeiro, o Maracanã, no ano de 1950, marcaria uma nova fase na participação de Jaime de Carvalho como torcedor. Já conhecido na cidade como principal representante da torcida rubro-negra, sua liderança iria transcender os limites clubísticos e ganhar contornos nacionais. Ela seria decorrência da realização da Copa do Mundo no Brasil e da escolha de Jaime para a chefia da torcida da seleção brasileira. Após doze anos de intervalo do torneio, em virtude da Segunda Guerra Mundial, o país seria eleito como sede de um encontro internacional de repercussão e magnitude. A nação assumia a incumbência de mostrar à Europa a sua capacidade de organização e a sua condição de país civilizado, por meio de um povo apto a mostrar seu elevado pendor cívico-moral.
A preocupação em projetar a imagem de um país cordato fazia com que as autoridades delegassem a Jaime de Carvalho boa parte da responsabilidade na orientação dos torcedores.
Os organizadores vislumbravam a importância de um chefe de torcida que auxiliasse o trabalho do chefe de polícia no comportamento dos espectadores. Uma campanha desenvolvida pela imprensa ressaltava a inconveniência do arremesso de objetos no gramado, do emprego de palavrões e recomendava a chegada antecipada, a fim de evitar tumultos no acesso às tribunas. Com este intuito, os meios de comunicação davam inteiro aval à Charanga, sob o patrocínio de uma loja de roupas a anunciar suas atividades, seus preparativos e suas surpresas para os dias de jogo.
A reação pacífica do público na partida final da competição, após a inesperada derrota para o Uruguai, valeu aos torcedores inúmeros elogios, inclusive do presidente da FIFA, Jules Rimet. Em casa, os brasileiros haviam dado uma lição desportiva, sabendo perder com hombridade e patriotismo. Antes disto já tinha sido frisada a criatividade da torcida na partida contra a Espanha quando, face a uma goleada de seis a um, surge de forma espontânea o clamor da massa a entoar a marchinha “Touradas de Madri”, composta por João de Barros, alusão irônica à débâcle da fúria espanhola naquela tarde. Presente ao jogo, diz-se que Braguinha foi às lágrimas ao escutar sua música cantada por uma multidão estimada em duzentas mil pessoas.
O êxito de Jaime de Carvalho na condução dos torcedores revelaria-se frutífero dali em diante, com a inauguração de um ciclo de viagens internacionais que se iniciaria na edição osterior da Copa do Mundo, na Suíça, em 1954. Depois de colocar-se à frente da torcida na fase eliminatória do mundial, partiria de Didi e dos demais membros da delegação o apelo em favor da presença do líder da Charanga na Europa. Com o pedido aceito, uma campanha promovida pelo Jornal dos Sports e por um estabelecimento comercial angariou fundos para a viagem, concedendo a Jaime não só a passagem como o status de Embaixador da torcida brasileira no exterior. Jaime embarcou para a capital suíça munido de vários apetrechos, dentre eles, dez couros para fabricar surdos, trezentas gaitinhas, duas sirenes e um par de pratos de banda de música. Na estréia da seleção, entrou em campo junto com os radialistas brasileiros e estendeu sobre o alambrado uma faixa verde e amarela bordada em branco “Avante, Brasil!”, uma inovação em âmbito internacional.
No mesmo ano de 1954, esse torcedor participaria do Campeonato Sul-Americano na Argentina. Sua mulher, Laura de Carvalho, seria responsável pela confecção da maior bandeira do Brasil feita até então, com oito por dez metros, desfraldada na entrada do time em campo. Produção caseira, tingida sob latas velhas em um fogão a lenha, a utilização da imensa bandeira facilitaria a identificação dos torcedores de um mesmo país no interior de um estádio, fato inusitado para a época. A experiência das viagens tornar-se-ia assim recorrente ao longo das décadas e perduraria até o final de sua vida. Sua participação estenderia-se à Copa do Mundo do Chile, em 1962, quando o Brasil obtém o bicampeonato; às partidas eliminatórias no Paraguai, válidas para o Mundial do México, em 1970, quando o país triunfa pela terceira vez; e à Copa do Mundo da Alemanha, em 1974, onde assistiria aos treinos e organizaria diversas passeatas pelas cidades alemãs.
O prestígio obtido com a atuação nos jogos da Seleção Brasileira não acarretaria a ausência em nível local. Jaime passaria a seguir o Flamengo de trem, nas partidas válidas pelo torneio Rio-São Paulo de clubes, campeonato instituído na década de 1950. Seu empenho não se restringiria ao domínio do futebol profissional, pois a Charanga integraria-se às mais diversas modalidades esportivas em que o clube estivesse envolvido, como o basquete, o remo e o vôlei. Os esportes amadores também seriam alvo de interesse da agremiação, com a presença nos Jogos da Primavera e nos Jogos Infantis, eventos tradicionais da cidade.
Nos anos de 1960, Mário Filho reeditaria uma outra atração lançada originalmente pelo seu jornal no ano de 1936: o Duelo de Torcidas. Levava-se para a arquibancada o mesmo espírito esportivo vivenciado dentro de campo e transferia-se para os estádios a lógica competitiva dos desfiles das escolas de samba. Um júri constituído pelo jornal avaliava a performance dos torcedores na arquibancada, amparado em critérios que privilegiavam a qualidade, a potência e a vibração das baterias; a beleza, a originalidade e a criatividade dos uniformes; a quantidade, o tamanho e o formato das bandeiras, entre outros quesitos. Esses estímulos da imprensa esportiva impregnavam os jogos de uma ambiência carnavalesca. Os cronistas exortavam, por meio de metáforas extraídas de fenômenos da natureza, os efeitos plásticos da profusão de sirenes, cornetas, flâmulas, confetes, serpentinas, estandartes e balões multicores. Em tom de grandiloqüência, Mário Filho referia-se ao “rumor oceânico da multidão” e aos “abalos sísmicos” provocados pelo frenesi da torcida, enquanto Vargas Neto destacava “as cachoeiras de papéis picados”, que produziam uma “cascata de arco-íris”. Nélson Rodrigues, por sua vez, descrevia o delírio coletivo com o timbre poético que lhe era característico: “no ar, por muito tempo, o grito em flor”; “no mar, uma flora de bandeiras flamengas”.
Para a produção de semelhante espetáculo, chefes de torcida como Dulce Rosalina do Vasco, Tarzã do Botafogo e Paulista do Fluminense ensaiavam coreografias ao longo da semana. Jaime arregimentava as crianças da vizinhança de sua residência em Niterói para fazer bandeirinhas, dirigia-se às malharias do centro do Rio e buscava subvenção junto aos dirigentes do clube para vencer o torneio das torcidas. No caso da Charanga, a culminância ocorria na véspera da partida, quando dona Laura passava a noite fazendo refeições para os trinta músicos do grupo na manhã seguinte. Depois do lanche matutino, os integrantes da banda encaminhavam-se para o Maracanã, a fim de demarcar o território, desenrolar as bandeiras, encourar e afinar os instrumentos. Ainda que o jogo principal só começasse a tarde, a Charanga chegava ao estádio às dez horas da manhã.
Essa rotina seria comprometida no final da década de 1960, quando Jaime de Carvalho adoeceu e teve de enfrentar um quadro clínico de pressão alta e diabete. O afastamento temporário criou um vácuo na liderança da torcida, o que permitiu a instauração de uma crise em seu interior. Pedro Paulo Bebiano, de 18 anos, e um grupo de rapazes decidiu abandonar a Charanga e criar uma torcida à parte, denominada Poder Jovem, que mais tarde viria a se chamar Torcida Jovem do Flamengo. Em uma época marcada pela rebeldia, em que movimentos juvenis como o Maio de 68 na Franca repercutiam em todo o mundo, os membros desta nova geração reivindicavam novos métodos de participação nos estádios. Ao protagonizar à sua maneira o conflito geracional, estes jovens lutavam pelo direito ao protesto e à contestação em fases críticas da equipe, procedimento inconcebível para Jaime de Carvalho, que não admitia vaias ou qualquer tipo de hostilidade aos jogadores. Com o questionamento de sua autoridade, o ato de torcer tomaria outros rumos, gerados pela cisão na unidade da torcida.
Àquela época, entretanto, Jaime era respeitado na cidade e tornava-se um personagem célebre no meio esportivo, o que lhe renderia inúmeras homenagens. O Jubileu de Prata da Charanga em 1967, quando o grupo completou vinte e cinco anos de existência, foi comemorado com uma festa no Morro da Viúva, com direito a discursos de dirigentes, a mensagens do presidente do clube e a presentes como um moderno megafone importado dos Estados Unidos. Se representantes das torcidas co-irmãs do Vasco, do Botafogo, do Fluminense e até do Corinthians reputavam Jaime como o chefe dos chefes de torcida, viria a receber ainda o título de torcedor número um do Rio, outorgado pelo capitão de policiamento do Maracanã. Porta-voz dos alvinegros, Tarzã subiu ao palco no aniversário da Charanga com uma enorme bandeira do Botafogo, entregou a Jaime uma estatueta com a figura de um pescador e assim se pronunciou: “Comparo um chefe de torcida a um pescador, sempre pescando simpatias. Jaime é um pescador de simpatias”. A homenagem principal viria no ano de 1973, ocasião em que Jaime seria condecorado como cidadão honorário do Estado da Guanabara pelos serviços prestados ao “clube mais querido do Brasil”. Jaime de Carvalho permaneceria no comando da Charanga até o seu falecimento. Enfermo no Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro, não deixaria de enviar cartas à seção de leitores dos jornais da cidade, de onde continuaria a instruir os torcedores e a propagar seu ideais pedagógico-nacionalistas, expressos em lemas como “O Flamengo ensina a amar o Brasil sobre todas as coisas” e “Onde encontrares um flamengo, encontrarás um amigo”. Antes de ser acometido por um câncer no dia quatro de maio de 1976, Jaime passaria a liderança da torcida à sua mulher, Laura, que manteria ativa a Charanga durante a década de 1980.
No final desse decênio, porém, um fenômeno musical despontaria nas arquibancadas, levando a Charanga a um período de declínio. Eram as torcidas organizadas, inflamadas por uníssonos muito mais potentes e possantes, oriundos da batida funk que embalaria a preferência rítmica de expressivas e emergentes camadas juvenis cariocas. Com uma maior capacidade de mobilização, com uma dinâmica corporativa própria e com novas técnicas corporais, estas torcidas apropriariam-se do espaço ocupado pela Charanga. Sem mais ecoar como outrora, a orquestra deslocou-se para as cadeiras comuns do anel inferior do Maracanã e, pouco tempo depois, retirou-se do estádio, limitando sua atuação às partidas amadoras ou aos eventos sociais do clube.
Ao longo de trinta e cinco anos, Jaime de Carvalho dividiu seu tempo entre os compromissos com o funcionalismo público federal e as atividades com sua agremiação torcedora. A vinculação ao futebol deu-lhe um reconhecimento na vida carioca e brasileira que, de outro modo, jamais teria ocorrido. Precursor de um movimento de aproximação entre a música e o futebol, elementos-chave na construção da imagem nacional, Jaime ajudou a formar uma platéia festiva e competitiva nos estádios do Rio de Janeiro durante as décadas de 1940, 1950 e 1960. Encarnou assim a abnegação por um clube, emblema de um cotidiano partilhado por milhares de torcedores. Ao criar uma atmosfera comunitária em meio a um espetáculo de massas, promoveu em torno de si a integração de diferentes estratos sociais, que iam de professores, advogados, escriturários, magistrados, médicos, operários, militares, até expoentes da Era do Rádio, como a cantora Ângela Maria e o cantor Blecaute. Embora não tenha pertencido ao grupo, seria Wilson Baptista o sambista que melhor exaltaria a profissão de fé do torcedor: “Pode chover,/ pode o sol me queimar/ que eu vou pra ver/ a Charanga do Jaime tocar:/ – Flamengo, Flamengo!/ tua glória é lutar,/ quando o Mengo perde/ eu não quero almoçar,/ eu não quero jantar.”.
Fonte: Arquivo Histórico do Jornal dos Sports
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