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sexta-feira, 11 de abril de 2008

Gol de Placa

Gol de Placa

Jorge Lasperg

O coração parecia que ia sair pela boca. O velho Silva nem precisava ter perguntado se eu já estava pronto, eu nem tinha dormido direito aquela noite, ansioso de chegar logo a hora de ir ao Maracanã pela primeira vez. Cheguei a sonhar que estava no meio da torcida, agitando minha bandeira, metro e dez por sessenta, pequena mesmo para os padrões modestos da época, mas que parecia enorme para mim. Minha camisa do Flamengo, comprada na feira, desbotada e já um pouco curta, tinha descosturado no sovaco esquerdo, eu mesmo consertei, linha branca porque não tinha outra, estava separada em cima da cama desde manhã cedinho, a bandeira rubro-negra de chita que minha avó fez, cabo de vassoura por mastro, enrolada e perfilada ao lado do guarda-roupa, meu uniforme e minha arma de paz aguardando a hora da batalha de alegria.

Meu avô havia prometido, fazia algum tempo, que me levaria ao Maracanã quando houvesse um jogo com motivação suficiente para fazê-lo deslocar-se da Ilha do Governador, onde morávamos, para lá. Naquele tempo, não existia a ponte nova do Galeão, muito menos Linha Vermelha, isso sem falar no serviço de ônibus que servia ao bairro, pra lá de precário durante a semana, imagina então num domingo. Aquele jogo contra o Santos parecia sob encomenda para ele. Matava as saudades do Maracanã, encontrava os velhos amigos da Charanga do Jaime, cumpria a promessa feita ao neto, via o Flamengo e, de quebra, o Pelé. Melhor seria impossível.

Eu saiba de cor a escalação dos dois times para aquele jogo. O Santos, o grande Santos, visitante ilustre, respeitado e temido, segundo time no coração de todos os brasileiros, formaria com Claudio, Carlos Alberto, Ramos Delgado, Joel e Rildo; Clodoaldo e Nenê; Edu, Toninho, Pelé e Abel. O Flamengo, combalido, mal das pernas naquele campeonato nacional, apenas duas vitórias magras por um a zero, um elenco bem mais modesto, mas Flamengo é Flamengo, iria de Claudinei, Murilo, Manicera, Onça e Paulo Henrique; Carlinhos e Liminha; Luís Carlos, Fio, Silva e Rodrigues Neto. Essa certamente não era uma das melhores formações que o Flamengo já teve, mas até que dava para se entusiasmar um pouco com a elegância do Carlinhos Violino, a habilidade do Silva Batuta e a raça do Paulo Henrique. E mais ainda com Pelé, Edu, Carlos Alberto, Clodoaldo, Toninho, Ramos Delgado, Joel... Talvez tenha sido exatamente nesse momento que meu avô percebeu como essa partida poderia frustrar e entristecer o coração do neto, pequeno torcedor. Porque, se para ele, adulto e calejado, qualquer derrota era suficiente para acabrunhar, imagina então para um garoto que já sinalizava como torcedor apaixonado e estava indo ao estádio de futebol pela primeira vez. E isso era mais do que possível, afinal o Flamengo não vinha bem naquele ano de 1968, e ia enfrentar nada menos que o Santos de Pelé. Quer dizer, uma derrota nesse jogo era mais do que provável, e ele queria muito que a minha primeira vez no Maracanã fosse um momento mágico, de alegria, nunca uma derrota. Tentando proteger-me de uma decepção quase certa, sugeriu adiar o pagamento da promessa, veio com aquela conversa de cerca-lourenço, a gente podia ir no próximo jogo, esse de hoje vai ser muito difícil, e é claro que eu não aceitei, de jeito nenhum, você prometeu, não importa se perder, eu quero ir hoje mesmo. E, para mim, naquele dia, o resultado do jogo era apenas um detalhe sem a menor importância, o que eu queria era ir ao Maracanã, ver meu time de perto, o Flamengo, minha paixão de menino, a mística da camisa que joga sozinha, que transforma derrotas inevitáveis em vitórias impossíveis, não importa a escalação, eu quero é ver o Flamengo jogar. Sem nenhum outro argumento convincente para lançar mão, o velho Silva capitulou, deu de ombros, então tá certo, nós vamos, mas se o Flamengo perder não diga que eu não avisei. Dei um grito de euforia. Foi quase impossível para o velho disfarçar a alegria de estar proporcionando aquela felicidade toda ao neto querido.

O velho ônibus engolia cada quilômetro daquela imensa Avenida Brasil com a voracidade que seu velho motor fumacento permitia. Fomos sentados naquele banco alto, bem em cima da roda traseira, sacolejando em cada buraco do asfalto, eu na janela, exibindo orgulhoso a pequena bandeira que tremulava, meu avô achava graça. "Sabe como é criança, a gente faz o que pode para agradar, presente, estória, passeio", dizia ele para o cobrador que fingia prestar atenção, a haste esquerda dos óculos fundo de garrafa remendada com esparadrapo, camisa azul-claro de manga curta, gola puída, mancha de café escorrida próxima ao cerzido no bolso, na mão esquerda as cédulas dobradas ao comprido, separadas por valor, presas ao pai-de-todos e ao fura-bolo, uma unha enorme e encardida no dedo mindinho. "Falta muito, vô?", eu perguntava a cada cinco minutos daquela viagem interminável. "Calma, rapaz", dizia o velho com serenidade, "calma que o melhor da festa é esperar por ela". Tentando atenuar um pouco minha ansiedade, ele me contava estórias do Maracanã. Lembrou da primeira vez dele no Gigante do Derby, aquele dezesseis de junho fatídico, meu Deus, perdemos a Copa em casa, tudo por causa do Bigode, alfesquerdo do Fluminense, aquele frouxo, levou um tabefe do Obdúlio Varela bem no meio das fuças e deixou por isso mesmo, tinha que ter feito uma falta no Ghiggia antes dele entrar na área, entrou sozinho, chutou como quis, fraquinho, rasteiro, o frangueiro do Barbosa aceitou, não tive forças nem pra chorar. Chegamos, me dá a mão, vamos descer.

Atravessamos a Avenida Maracanã no sinal do viaduto Oduvaldo Cozzi. Eu nem piscava, não queria perder nada. Chegamos. O Maracanã, maior estádio do mundo. O burburinho dos torcedores, Mengooo, Mengooo. E essa fila na bilheteria que não anda. O ingresso, meu passaporte para a felicidade, impresso em papel jornal azul, ADEG - Administração dos Estádios da Guanabara, Federação Carioca de Futebol, Estádio Mário Filho, Torneio Roberto Gomes Pedrosa, Santos X Flamengo. A estátua do Bellini, em pé sobre o globo terrestre, a taça "Jules Rimet" erguida à mão direita, olhar altivo ao horizonte, muitos torcedores à volta, alguns olhavam impacientemente o relógio, esperando algum amigo atrasado, outros riam e brincavam, bebiam cerveja em copos de plástico. Um pequeno empurra-empurra nas catracas de acesso à rampa monumental, quase meu cachorro-quente Geneal cai no chão. Me dá o canhoto, moço, vou guardar de lembrança. A subida da rampa, eu já não agüentando a emoção, enfim o Maracanã, eu estava lá, eu estava lá, eu estava lá. Queria subir correndo, puxava o velho pela mão, depressa, vô, depressa, o jogo já começou, ele divertia-se com a minha aflição. A escuridão do estreito túnel de acesso às arquibancadas. Um torcedor mais alto bateu com a mão numa placa de propaganda da Coca-Cola no alto do túnel, gesto repetido por vários outros torcedores que vinham atrás, provocando uma barulheira que só aumentava minha excitação. Desemboquei na arquibancada. O sol direto nos meu olhos. Céu azul de brigadeiro. O verde do gramado. O azulão das cadeiras especiais, no meio delas contrastava o marrom dos assentos estofados da tribuna de honra, lugar para celebridades, até a rainha da Inglaterra já esteve lá. Logo abaixo estavam as cabines de rádio, é lá que fica o Jorge Curi, meu narrador favorito, meu xará, rubro-negro como eu, devia ter trazido meu binóculo para ver a cara dele, A torcida agitando-se à esquerda das cadeiras especiais. A bola já rolando no gramado, preliminar de infanto-juvenis, Flamengo e São Cristóvão. Achei que o jogo principal já tinha começado, ainda mais que o uniforme do São Cristóvão era igualzinho ao do Santos, todo branquinho, o escudo também era bem parecido, até o camisa dez do São Cristóvão era um crioulo forte com aquele mesmo topete que o Pelé usa até hoje. Só me convenci que não tínhamos chegado atrasados quando vi o camisa dez do Flamengo, um lourinho franzino, bem diferente do Silva Batuta, camisa dez do time de cima, negro forte e lustroso. "Vamos lá para a Charanga ", disse meu avô. A Charanga do Jaime, primeira torcida organizada do Brasil, as cornetas mandando ver aquelas marchinhas do tempo do ronca, eu não conhecia direito, tará-tará-tará-tatá, isto é o Zé Pereira, meu avô dizia, vê se pode, Zé Pereira, isso lá é nome de música, eu queria era ouvir o hino do Flamengo, tocado logo em seguida. Cantamos o hino juntos. Enquanto caminhávamos na direção da Charanga do Jaime, ia prestando atenção naquele jogo, tanto quanto a circunstância permitia. E nem pisquei quando o camisa dez do Flamengo, o tal russinho, entrou na área com a bola dominada, de tão grudada no pé parecia amarrada ao cadarço da chuteira, driblou três zagueiros na corrida, enganou o goleiro com uma ginga de corpo, tocou para o gol vazio e correu em direção à torcida, braços abertos, vibrando, como ele vibrava, parecia um torcedor da geral, bem ali na minha frente, na altura de onde eu estava passando, como a dar-me boas vindas em minha iniciação no Maracanã. Beleza de gol, jogada de craque, uma pintura. Gritei e desfraldei a pequena bandeira, agradecido. O velho Silva vinha distraído, procurando algum amigo pelas arquibancadas, só viu quando a bola já estava na rede. Que golaço, vô, que golaço. "E isso é só a preliminar, imagina só quando começar o jogo principal, esse menino vai ter um troço", comentou, rindo, com aquele senhor mulato sentado diante dele, camisa do Flamengo mais surrada que a minha, de tão curta e apertada deixava à mostra a enorme pança e uma respeitável hérnia umbilical. Para mim, já tinha valido o ingresso. Mas aquele gol foi realmente uma obra de arte.

Já na Charanga, meu avô me apresentava aos seus velhos companheiros de torcida, flamenguista orgulhoso, cheio de si. Eu ali, meio encabulado, entre tapinhas nas costas e sorrisos da velharada, virei meio que o mascote de todos eles, todos queriam me oferecer alguma coisa, um biscoito de polvilho, um copo de mate, um picolé. Fim da preliminar, ganhamos de um a zero, e aquele gol não saía da minha cabeça, alguém aí sabe o nome daquele garoto que fez o gol, acenos negativos com a cabeça, ninguém sabia, a maioria nem mesmo tinha visto o gol, preliminar de juvenis só serve pra encher lingüiça, passar o tempo, bom mesmo é o jogo principal, só faltam dez minutos. Gandulas entrando em campo em fila indiana, uniforme azul, aquela reverência ensaiadinha, alguns aplausos chochos. Nisso, a agitação aumentou, o foguetório espoucava no céu, desfraldavam-se os bandeirões, chuva de papel picado, o Flamengo em campo, Paulo Henrique, capitão do time, vinha à frente, ladeado por dois garotos mais ou menos da minha idade, vestidos com o uniforme completo do time, eu morrendo de inveja deles. Em seguida, entra o Santos, aplausos calorosos em vez dos apupos destinados a qualquer outro adversário, reverência protocolar ao Rei e sua comitiva, que acenavam para a torcida rubro-negra em sinal de respeito e agradecimento. Nem a tradicional vaia para o trio de arbitragem foi marcante. "Agora sim, você vai ver um jogo de verdade, não uma pelada de garotos", disse o velho, antes de fazer o sinal da cruz e sentar. Bola rolando, saída deles, senta logo para não atrapalhar quem está sentado atrás de você.

Não era preciso entender muito de futebol para perceber o abismo de talento que separava os dois times. Diante do Santos de Pelé, meu Flamengo era apenas um adversário tentando preservar ao máximo sua dignidade, consciente de estar lutando contra um oponente sabidamente mais forte. O olhar tenso e preocupado do velho Silva dispensava comentários. Fim do primeiro tempo, um a zero para eles, foi até pouco. Apesar da velha mística da camisa rubro-negra, estava claro que, com o Santos de Pelé, isso não surtia muito efeito. E aquele golaço do menino dos infanto-juvenis a repetir-se mais e mais na minha mente. Se ele entrasse nesse jogo o Santos ia ver o que é bom, comentei com meu avô. Sensibilizado com minha ingenuidade, pôs a mão no meu ombro, não disse nada, como que preparando meu espírito para uma derrota que já se concretizava em passos largos. Parecia arrependido de estar lá, não por ele, mas por mim, que presenciava uma derrota na minha primeira vez no Maracanã. Sentia-se responsável por minha frustração. Vai começar o segundo tempo, quem sabe uma bola alta na área, quem sabe um chute de longe, quem sabe um milagre, quem sabe.

Pouco depois do Santos fazer o segundo gol, meu avô levantou-se : "Vamos embora, só faltam dez minutos, esse jogo já está perdido mesmo, a viagem de volta é longa". Obedeci. Já no ônibus de volta para casa, de novo a cena do golaço do menino franzino na preliminar passava diante dos meus olhos. "Que pena que você não viu, vô, foi o gol mais bonito que eu já vi na minha vida, se aquele garoto estivesse no time titular a gente não perdia", eu dizia com a minha inocência. Mais conformado, o velho abraçou-me e disse com aquele brilho de sinceridade e emoção em seu olhar : "Eu já vivi muitas derrotas, algumas muito difíceis de digerir, e não morri por causa delas, assim como você também não vai morrer por causa do jogo de hoje. A minha maior tristeza não é o Flamengo ter perdido, é isso ter acontecido justamente no dia em que eu trago você ao Maracanã pela primeira vez", lamentou. "Mas nós ganhamos a preliminar de juvenis, e foi com um golaço", argumentei. "É verdade, é verdade", concordou, "e eu desejo do fundo do meu coração que a felicidade que você sentiu por aquele gol do menino, um único golzinho sem importância, que quase ninguém prestou atenção, mas que te encantou tanto, se repita muitas e muitas vezes. Quem sabe esse menino cresce, vira um craque e te enche o coração de felicidade em muitos outros jogos. Está bem assim ?", "Claro, vô ! Toca aqui !", disse, estendendo minha mão para ele. Ele deu uma sonora gargalhada e apertou minha pequena mão. Desfraldei a bandeira, fomos felizes para casa cantando o hino do Flamengo, parecia até que comemorávamos uma vitória.

Hoje, depois de tantos anos, eu revejo as fotos daquele menino franzino, o Zico, aquele mesmo do golaço que pouca gente reparou naquela preliminar de infanto-juvenis, que cresceu e virou o maior patrimônio da torcida rubro-negra em todos os tempos, erguendo o troféu de Campeão Mundial Interclubes em Tóquio em 1981, e lembro do velho Silva com saudades e gratidão por aquele dia em que ele me levou ao Maracanã para ver meu primeiro jogo de futebol.


Jorge Lasperg é Analista de Sistemas


http://www.almacarioca.com.br/zico.htm

Um comentário:

Anônimo disse...

Obrigado por me fazer rever este filme na minha memória. Não falo do jôgo. Falo de Liminha e Rodrigues Neto, da charanga do Jaime e de sua espôsa D. Laura, lá em cima, do lado esquerdo das arquibancadas que incansavelmente não parava de tocar um só instante. Naquela época, em jogos do Mengão, o público era de no mínimo 170 mil torcedores. Futebol romântico, grandes craques (ná época não havia exportação) com dribles desconsertantes, audazes e arrebatadores. Tenho a foto da Rainha da Inglaterra. E para completar este show, a voz e a narração inigualável (que até hoje soam aos meus ouvidos) do meu saudoso Jorge Curi. Graças a Deus tenho em minha casa quatro discos de vinil com narrações dêle, comentários de Waldir Amaral e reportagens de campo do Kléber Leite. E aquele sinal da Rádio Globo após a narração. Gol...Golão...Golaço..aço...aço...
Ainda entram pelos meus ouvidos, me dão calafrios de emoção que saiam por todos os poros. Obrigado,
meu Deus, por ter me dado viver essas emoções. Obrigado.
Obrigado a vc também, Jorge Lasperg.
KID