Não passava pela esfera de previsibilidade dos rapazes que se reuniram na Rua do Russel, na pacata cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, aos dezessete dias do mês de novembro de 1895, que estavam prestes a criar um mundo. Aparentemente queriam um barco para disputar regatas, ponto. Mas as aparências já enganavam ao final do século XIX. Os rapazes não tinham um barco, não tinham uma bandeira, não tinham dinheiro, e seu desejo não era apenas participar das regatas, mas disputá-las apaixonadamente. Antes do barco, da bandeira e do dinheiro, a paixão. E pronto: estava concebido em suas características fundamentais o Clube de Regatas do Flamengo. Um mundo de fé, solidariedade e paixão. Não há inimigo que não reconheça: o Flamengo é uma nação. Estamos espalhados pelo mundo, aos milhões. Se é verdade que os gritos de Mengo! Têm sua fonte costumeira à esquerda da Tribuna de Honra do Maracanã, não são menos legítimos os mesmos gritos que se fazem ouvir do fim do Oiapoque ao extremo do Chuí. O Flamengo é tanto do carioca da gema quanto do nordestino que jamais foi ao Rio de Janeiro. Pertence igualmente ao empresário bem sucedido e ao flanelinha que conta os trocados para o ingresso mais barato. Pertence a mim, que escrevo, e a você, que me lê.
Hoje é dia de São Judas Tadeu, nosso padroeiro. Eu poderia contar muitas histórias de fé, de glória e de bravura. Quinhentos e oito são os gols de Zico pelo Flamengo. Mais de oitocentos são os jogos de Júnior. Definitivas são as cabeçadas de Valido e Rondinelli. Inigualável é o Maracanã cantando em vermelho e preto. Mas mesmo com tantas histórias de heróis consagrados, com a bravura de Almir arrastando a cara na lama para empurrar a bola para o gol, com o sangue de Adílio e Lico derramado em Santiago do Chile em defesa de nossas cores, eu vou contar a história de um herói anônimo, porque una e indivisível é a nossa fé.
Corria o mês de abril de 1999. O Flamengo acabara de vencer o Grêmio em Porto Alegre e eu voltava para o centro da cidade de ônibus, incógnito e feliz entre gremistas desolados. De tão lento o trânsito parou. E, sem que eu percebesse imediatamente a causa, os lamúrios tricolores se transformaram em revolta. Todos apontavam para a rua, onde um torcedor do Flamengo caminhava sozinho, em silêncio, vestindo uma velha camisa rubro-negra. - Canalha! Pega ele!, gritavam os gremistas do ônibus, sendo atendidos pelos gremistas que estavam nos carros parados. Logo o rubro-negro estava cercado por vinte, trinta tricolores, que tentavam arrancar-lhe a camisa. E quanto mais o rubro-negro resistia, mais os tricolores ficavam violentos, distribuindo socos e pontapés, rasgando em muitos pedaços a camisa que não foi tirada ante meras ameaças.
A camisa rasgada não impediu que o rubro-negro anônimo tentasse juntar os seus pedaços, que eram rasgados em pedaços menores ainda pelos gremistas, ações saudadas como se fossem gols tricolores em Gre-Nal. O rubro-negro já tinha marcas de sangue pelo corpo quando passou a Brigada Militar, dissipando os agressores. Logo só estava na rua o rubro-negro ferido, e espalhados pelo chão pontos de sangue e retalhos de pano vermelho e preto. Irá ao hospital, pensei, ou chamará pela Brigada que passou e não se ateve ao fato. Mas era um rubro-negro, e ele saiu catando os pedaços da camisa, um a um, até reuni-los em uma das mãos. Observado pelos gremistas do ônibus, não lhes dirigiu sequer um olhar de raiva. Beijou os panos amontoados, segurou-os orgulhosamente contra o peito e se foi, carregando pelas ruas de Porto Alegre os restos imortais de seu Manto Sagrado. E sorria.
Eis o mistério da nossa fé. A benção, São Judas Tadeu.
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6 comentários:
DEPOIS DE LER, ESTE TEXTO... NÃO TEM COMO DIZER PORQUE SOU FLAMENGUISTA....
Caraca, me emocionei até o fio do cabelo, isso é q é amor! Sou flamenguista desde os 3 anos de idade, hj tenho 51. Ex-atleta do Flamengo, embora, mulher e véia, qdo o Mengão tá no Maraca, não deixo de ir, é sempre uma emoção a mais. Ã beleza da Nação, tingindo de preto e vermelho akela arquibancada, isso pra mim é sinônimo de amor, como esta história aqui. FLAMENGO ATÉ MORRER!
Dinah Dias, Tijuca, RJ.
Isso resume bem o que é ser Flamengo. Obrigado pelos comentários.
Meus amigos, to extremamente triste. Hj soube q um amigo, um jovem universitário, flamenguista como nós, q não vejo há tempos, no dia da decisão contra o Botafogo, foi ao Maraca, o cara é super do bem, tava acompanhado de um menino de 15 anos... Qdo acabou o jogo, pegou o ônibus e desceu no Norteshopping para pegar um outro ônibus, passavam 2 ônibus de torcedores do Botafogo e pararam, tão somente para agredi-lo, mais de 20 dementes, ignorantes, boçais, ou seja lá q nome devemos dar a esses canalhas. Nestes últimos dois meses, Graças a Deus, ele tá se recuperando, depois de n plásticas, pra restaurar o rosto.
É de lastimar esta intolerância e a falta de respeito pela opção do próximo.
Desculpe pelo desabafo...
FLAMENGO ATÉ MORRER!
Dinah - Tijuca - RJ
Primeiramente, Dinah, não tem nada que se desculpar. É um prazer que divida conosco seus sentimentos.
Fico me perguntando o que passa pela cabeça de uns merdas desse. Que graça veem em bater, brigar, agredir? Isso passa longe do que o esporte significa (ou deveria significar). Melhoras para seu amigo.
Warley Morbeck
SER FLAMENGO ESTÁ ACIMA DE GOSTAR DE FUTEBOL, DE AMAR UM CLUBE, DE TER UMA PAIXÃO. SER FLAMENGO É MUITO MAIS:
SER FLAMENGO É QUASE MORRER DE FELICIDADE NAS VITÓRIAS E SENTIR A ALMA DESLIGAR-SE DO CORPO EM CADA DERROTA!
SER FLAMENGO É SENTIR UMA EMOÇÃO QUE O RUBRO-NEGRO SENTE DE VERDADE!
SÓ O FLAMENGO CONSEGUE TRANSPORTAR O FLAMENGUISTA DO INFERNO AO CÉU EM SEGUNDOS!
FLAMENGO NA VIDA E NA MORTE!
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