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terça-feira, 20 de setembro de 2011

Semana de Fla-Flu - Nelson Rodrigues

Amigos, de vez em quando eu esbarro num rubro-negro desvairado. Ainda ontem, encontrei, no posto 6, o Walter Clark. Nunca vi ninguém tão Flamengo! Entre parênteses, Walter Clark é um homem que vive tropeçando em milhões. Tem um ar típico do garoto do Pedro II fazendo gazeta na Quinta da Boa Vista. Conta-se que ele arranca contratos de publicidade até em velórios, até em cemitérios. Pois bem: e o Walter Clark só pensa no Fla-Flu.

Assim que me viu, ele me arrastou para um canto. Conversamos na varanda da TV Rio, diante do mar. Um cálido sopro marinho devastou-lhe o chuca-chuca de menino prodígio. Simplesmente, ele queria falar da batalha das batalhas. Em cima dos seus sapatos, pôs-se a exaltar o Flamengo. E eu senti, desde o primeiro momento, que a sua euforia é inteiramente errada, inteiramente imprópria. Falta-lhe o sentimento trágico do Fla-Flu.

Com sua cara de garoto, cara de Mozart aos sete anos, ele faz-me a seguinte inconfidência: vai comemorar a vitória com busca-pé, desfile, bombinhas, fogos diversos. Comprou um automóvel branco, nupcial, imaculado, forrado de arminho. E esse carro de noiva vai puxar a passeata. Pensa, também, numa charanga wagneriana para dar o tom alto à comemoração. Eu ouço o Walter Clark e calo. Mas há qualquer coisa de suicida nessa alegria prévia. Amigos, sempre que vai estourar uma catástrofe, o ser humano cai num otimismo obtuso, pétreo e córneo. Foi assim, em Hiroshima, na manhã dominical da bomba. Nenhum presságio, nenhuma tensão, nada que turvasse a ternura da cidade. Pastores, senhoras, crianças e babás tinham a mesma inconsciência de um bodinho de charrete. E, de repente, há o clarão hediondo.

Eis o que me pergunto: com as suas comemorações antecipadas, o Walter Clark não estará arranjando a sua Hiroshima particular? Todavia, esse estado de tensão dionisíaca não é apenas do jovem tubarão da publicidade. As reportagens descrevem a mesma euforia em todo o mundo rubro-negro. O treinador Flávio Costa está calmo, e repito: é a tal calma da catástrofe. Ao passo que todo o Fluminense sente, na carne e na alma, a angústia que anuncia as vitórias deslumbrantes.

Mas vejam a dupla experiência que está reservada ao Walter Clark: ele hoje canta a vitória rubro-negra, para domingo chorar a vitória tricolor. Foi assim também em 1919. Naquela ocasião, os eternos rivais quebraram lanças numa batalha gigantesca. Quarenta e quatro anos já rolaram depois disso. A cidade estava, como agora, cálida de Fla-Flu. Lembro que, no dia do jogo, alguém morreu na minha rua. E, no caixão, o defunto estava de cara amarrada, porque não ia ver o clássico eterno. Mas como eu ia dizendo: com o mesmo otimismo trágico do Walter Clark, o Flamengo preparou a apoteose. Quatro corneteiros, de casaca e esporas, esperavam, com os respectivos cavalos, o final do match.

E venceu o Fluminense. Creio que não existe, na história de um clube, nada que se compare ao nosso triunfo naquele Fla-Flu. Quatro a zero. Pode-se ter uma idéia da ira e frustração dos corneteiros. Os cavalos baixaram as orelhas desoladas, e mais pareciam tristíssimos jumentos. Assim aconteceu há 44 anos. E agora?

O profeta já anunciou: "Fluminense, campeão de 63!". Desta coluna, eu já fiz um apelo aos tricolores, vivos ou mortos. Ninguém pode faltar ao Maracanã domingo. Incluí os fantasmas na convocação, e explico: a morte não exime ninguém de seus deveres clubísticos. Em certos clássicos, cada adversário arrisca o passado, o presente e o futuro. Precisamos pensar nos títulos já possuídos. Ai do clube que não cultiva santas nostalgias. Com os torcedores de hoje e os fantasmas de velhíssimos triunfos: ganharemos o mais dramático Fla-Flu de todos os tempos.

Nelson Rodrigues, em O Globo de 13/12/1963. 


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