O Flamengo das Graças
Levei um susto quando vi o César, um ponta-de-lança do América, craque, entrar pela área e tocar no canto do Cantarele. Eu com 11 anos, não lembro bem a que altura do jogo foi o gol, naquele tempo o relógio do Maracá até tinha os minutos da partida, mas o susto foi realmente grande e eu instantaneamente me dediquei a sofrer pelo gol de empate.
Veio o intervalo e nada. O América mantinha sua tradição de asa-negra, num jogo que nem tinha lá muita importância para a tabela.
Mas qualquer jogo era importante, qualquer jogo do Flamengo para um garoto de 11 anos era e é importante. Porque não é apenas o jogo, não é apenas o número de títulos, não se trata de maneira nenhuma de uma competição de halterofilismo, em que ganha os maiores levantadores de peso em taças. A gente aprendia apenas que o Flamengo era um modo de ver a vida, em rubro-negro, com o espírito de antepassados de antes do big bang, a gente quando criança sabe que o Mengão é Cósmico desde sempre, não importando quem seja o presidente ou o roupeiro.
Por isto, tanto sofrimento naquele jogo de 1979, a gente já bicampeão, em busca do tri, mas líder na tabela. Eu e meu velho, saudoso pai, responsável pela Graça Eterna de me fazer Flamengo – eu deveria rezar todos os dias para ele agradecendo tal bênção.
Me lembro do cheiro de Maracanã, porque era um cheiro de adrenalina. Me lembro das roupas anos 70 do meu pai, a bermuda jeans, a camisa social meio larga, mostrando um pouco da barriga, as sandálias de couro conservadoras, o jeito de sentar nas arquibancadas. A mania de me levantar nos ombros após o gol, como se fosse ter replay, mas acredito que era para eu ter idéia do quão gigantesco é o Mengão, a torcida explodindo nas arquibancadas, as bandeiras, naquela época, os fogos.
Mas o jogo estava ruim naquele dia, Cláudio Adão perdendo gols, Zico muito marcado. Até que teve uma falta, creio que em cima do Adílio, em um ponto meio diagonal diante da área.
Eu peço uma pausa para explicar o que aconteceu em dezembro de 1978, poucos meses antes desse episódio contra o América: eu e meu pai não fomos ao jogo, meu irmão é que tinha ido e ficado atrás do gol, ali onde fica a Raça. Eu com 10 anos, meu pai teve certo temor de encarar um Flamengo x Vasco com 190 mil torcedores no Maraca. Ficamos então a ouvir o rádio, sofrendo com a atuação do ignóbil Leão, uma muralha contra nosso ataque formado por Zico, Cláudio Adão e Arilson, além do Marcinho, que acho que entrou no segundo tempo. Lá pelos 38 do segundo tempo, desligamos o rádio, inconformados. Minha expressão era de desapontamento absoluto – aos nove anos, tinha visto o Mengão perder nos pênaltis para o Bacalhau. A história parecia se repetir, o empate dava direito ao Vasco de disputar a final do estadual, pois levantariam o título do segundo turno.
Só que meu pai e eu decidimos religar o rádio, uns minutos depois. E pegamos o OOOOO de gol, acho que do Waldir Amaral, apesar de ser um OOOOOLLL tão longo que parecia o Jorge Curi. Respiramos fundo aguardando a vinheta para saber de que time tinha sido o gol e explodimos ao ouvir aquele “Flamengo”, da Rádio Globo.
São mágicas do futebol e do Flamengo: eu sei até hoje em que parte da casa meu velho estava pisando neste momento, e sei onde eu pisava, sei que passos demos para o abraço, e me lembro bem do grito de Rooooondinellli dado pelo locutor, ao fundo o som da massa gigantesca. Uma massa de Cristos, Davis, Exus, Alás, Jeovás, Oxossis, todas as religiões fundidas em uma só adoração, um só amor. Um Deus único e indivisível.
Como já me cansei de escrever, ou melhor, pelo jeito não cansei e continuo enchendo os outros com esta recordação, mas é isso: naquele momento, demos a partida para cinco anos inesquecíveis, até o título de 1983 e a partida do Zico. E como se estivesse a cantar com o Moraes Moreira, “e agora como é que eu fico/nas tardes de domingo/sem Zico no Maracanã”, meu velho resolveu partir desde mundo em janeiro de 1984, sem ver o Galinho com outra camisa, jamais. Aqueles cinco anos, no entanto, foram um presente divino.
Pois, voltando no tempo de novo, eu precisava desta pausa para explicar o que sentimos naquele Flamengo 1 x 1 América, quando Zico tocou na bola cobrando a falta, ela fez uma parábola e descaiu em um semideus já na horizontal, a camisa branca com a faixa no meio, o peixinho implacável, o gol de raça.
Gritamos juntos com a massa o “Rondineeli, Rondineellli!”, era o Deus da Raça fazendo um gol tão esperado, um dos gols mais importantes da minha vida. Vivemos aquele gol como se ainda tivéssemos acabado de ligar o rádio, na sala de nossa casa, na antesala de nossas almas. Não era o Vasco, era o América, mas só víamos, de qualquer maneira, em nossa frente, o Flamengo, onipresente, abstrato, rubro-negro, mas invisível. Sim, o Flamengo é como se fosse um colorido invisível, já que é uma força redentora da natureza.
Saímos do Maracanã com uma felicidade que jamais se repetiria. Não que não tivéssemos outras dezenas de alegrias nos anos seguintes, como já falei.
Mas naquele momento, era como se o Rondinelli tivesse feito aquilo por nós.
E assim é o Mengão Cósmico, é quase como se fosse Deus, fala para cada um de nós, e para todos ao mesmo tempo, com mensagens diferentes, mas um só amor. O Mengão é muito, mas muito mais que um clube, um time ou coisa assim. É Valido, Zizinho, Domingos da Guia, Dida, é o espírito do sangue derramado e da carne, é a oferenda e o oráculo ao mesmo tempo.
Só mesmo o Flamengo para fazer cinco anos jamais acabarem. Este Flamengo, tão eterno que sempre dura.
Gustavo de Almeida, Jornalista
Um comentário:
Sempre que leio o blog sinto-me como se voltasse ao ninho para visitar meus irmão. Irmãos rubro-negros que compartilham o mesmo amor sem limites e sem medidas. Tenho mto orgulho em fazer parte desta grande família e de sentir o mais genuíno e inabalável amor que alguém pode sentir na vida. Que seja eterno o nosso Flamengo. SRN!
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