Técnico, jogadores e cartolas enredavam-se numa babel de divergências. Desde o início da temporada, ainda no Campeonato Carioca, Cuca lamuriava-se para quem quisesse ouvir: “Não entendo como perdi duas vezes para esse grupo. É fraco!”, repetia, em rodas crescentemente numerosas, referindo-se às derrotas do Botafogo, seu clube anterior, nos Estaduais de 2007 e 2008. Até os entulhos que se amontoavam nos escombros da sede da Gávea sabiam – o futebol rubro-negro sofria com pouca (ou nenhuma) amizade e muita hipocrisia. As relações azedavam e, claro, os resultados não vinham.
Nem a volta de Adriano, repatriado para curar no balneário ensolarado e tolerante a depressão que o fez fugir da Internazionale, deu jeito. Em dois momentos duros, o treinador quase caiu. No intervalo de apenas uma semana de junho, o time tomou duas goleadas de futuros rebaixados – 4 a 2 para o Sport e, pior ainda, 5 a 0 para o Coritiba. As circunstâncias dos resultados semearam uma suspeita nos dirigentes – os jogadores queriam derrubar Cuca. A relação entre comandante e comandados esgarçara-se por completo.
“Era um beco sem saída, porque não podíamos ceder ao grupo, sob pena de perder o comando definitivamente. Mas do jeito que estava, a briga seria para não cair”, recorda um diretor que viveu agonia e glória. “A decisão foi esperar a poeira baixar, mas todo mundo sabia que os dias do Cuca estavam contados.” O técnico respirou por aparelhos ainda por sete rodadas, até o empate com o Barueri (1 a 1) no Maracanã. Cerca de 30 mil rubro-negros emolduraram o tropeço com o coro de “Adeus, Cuca”. Na tarde seguinte, consumou-se a demissão.
Terminava um período de permanente turbulência, que envolveu até a estrela do time. Adriano também bateu de frente com o técnico por causa de fofocas em relação às suas seguidas faltas. Um dos mais valorizados centroavantes do mundo, o jogador virou as costas aos milhões de euros do futebol italiano, o reino onde se tornou imperador, rompendo o contrato com a Internazionale, sob alegação de estar deprimido. Simples assim. Exilou-se na Vila Cruzeiro, comunidade ultraviolenta que integra o conjunto de favelas do Alemão, na Zona Norte carioca, para tornar real a fábula do “Rap da Felicidade”, hit longevo de Cidinho e Doca: “Eu só quero é ser feliz/ Andar tranquilamente/ Na favela onde eu nasci”.
Após anunciar a aposentadoria aos 27 anos, voltou atrás diante do aceno do Flamengo, seu clube de origem e coração. As letras invisíveis do contrato de aproximadamente R$ 400 mil mensais abençoavam a vida mundana que faz a alegria do craque. Mas Cuca não rezava pela mesma cartilha, e permitiu-se comentários sobre as preferências etílicas de Adriano. Os fofoqueiros entraram em campo e o ídolo, assim que soube, declarou guerra ao treinador. “Por esse aí, eu não corro”, avisou a interlocutores suficientes para que a história se espalhasse. Os outros jogadores fecharam com o artilheiro. E a batalha pelo poder terminou com a vítima de sempre.
Hierarquia nunca foi um valor caro no mundo do Flamengo, e tourear Adriano estava longe de ser missão complicada. Na verdade, uma questão de comunicação, na avaliação dos comandantes rubro-negros. “As faltas estavam previstas. No São Paulo ele também faltava. Bastava afinar o discurso, uniformizar a versão para não transformar aquilo numa crise permanente”, desfila eufemismos um integrante da comissão técnica.
A saída de Cuca resolveu o principal entrave. O ídolo da camisa 10 estava em paz novamente com sua rotina insone. Em troca, devolveu ao Flamengo algo perdido desde a saída de Romário, dez anos antes: um centroavante confiável, temido pelos adversários e fazedor de gols. Valia a pena, e o Flamengo fez o dever de casa. Após os jogos de domingo, todos os jogadores se apresentavam na terça-feira – menos Adriano. Nas primeiras semanas, foi pauta permanente dos encarregados da cobertura do clube, que ouviam as mesmas explicações. Problemas particulares, dispensa pura e simples, recondicionamento numa academia de ginástica etc. A folga extra do craque foi, assim, naturalizada.
Funcionou. Adriano terminou artilheiro do campeonato (ao lado de Diego Tardelli, do Atlético Mineiro) e cumpriu todo o circuito hortifrutigranjeiro da noite carioca, e suas mulheres melancia, melão, jaca etc. Mas o camisa 10 do estilo low profile que o clube adotou foi outro. Com a queda de Cuca, Andrade assumiu mais uma vez como interino. O clube não sabia, mas estava descobrindo o camisa 10 da ordem vitoriosa.
O jogo começou a virar no domingo 26 de junho, na Vila Belmiro, quando se quebrou uma escrita histórica. Pela primeira vez em partidas oficiais, o Flamengo venceu o Santos (2 a 1) na casa do adversário. Ao fim da batalha, Andrade chorou, pelo resultado e pela morte do ex-goleiro Zé Carlos, companheiro do Brasileiro de 1987 (o do tetra), vítima de câncer. Integrante do maior time da história rubro-negra, o ídolo feito técnico emocionou o Brasil. Não saiu mais.
Antes dele, em maio, chegou outro achado, um problema que o destino transformou em herói. Numa manobra surpreendente, o clube anunciou a recontratação de Petkovic, ídolo do tri estadual de 2001, semiaposentado, que impôs a volta na negociação de uma dívida de R$ 17 milhões. Rigorosamente ninguém acreditava que o sérvio pudesse sequer jogar, mas Andrade começou a escalá-lo. Kleber Leite pediu demissão numa discordância pública pela aposta do técnico. O cartola fora contra a volta do meia, que no terço final do campeonato virou o craque da equipe, ao lado de Adriano, além de amálgama do grupo. E ainda fez dois gols olímpicos decisivos, contra Palmeiras e Atlético Mineiro, garantindo vitórias fora de casa.
A eles, juntaram-se dois reforços tirados da cartola pelo novo vice de futebol, Marcos Braz: o zagueiro Álvaro, que caíra em desgraça no Inter por problemas de relacionamento, e o volante chileno Maldonado, esquecido na Turquia. Jogadores pragmáticos, líderes respeitados pelos mais jovens, deram o equilíbrio que faltava. O Flamengo aprumou-se como há muito não acontecia.
Como num milagre, tudo passou a funcionar. Os dirigentes cuidaram de debelar os incêndios, grandes, médios e pequenos do dia a dia dos jogadores; o dinheiro da Olympikus e da nova patrocinadora, a distribuidora de combustíveis Ale, manteve os salários em dia; Andrade aboliu o esquema com três zagueiros e armação concentrada nos laterais, libertando o time que reassumiu sua vocação ofensiva e enfileirou vitórias.
Bruno, Álvaro, Leo Moura e, surpresa, Adriano criaram um colegiado de líderes do elenco, com aval da diretoria e da comissão técnica, que deu aos jogadores total autonomia na sua convivência. “Normalmente, os clubes gostam de gerenciar o relacionamento dos atletas. Fizemos diferente, porque sentimos que era um grupo experiente, motivado, com foco nas vitórias”, explica um veterano integrante da comissão técnica.
A estratégia foi usada em bons e maus momentos. Em outubro, após o jogo contra o Barueri (derrota por 2 a 0, a última do campeonato), Adriano e Williams foram se encontrar em São Paulo com Ronaldo Fenômeno, para uma jornada daquelas que terminam com o sol a pino. No dia seguinte, foram chamados pelos outros jogadores, que pediram concentração e temperança até o fim da competição, dali a pouco mais de um mês. “Estamos muito perto, vamos segurar a onda que vale a pena”, disse um dos mais experientes da equipe, convocando para a arrancada derradeira.
O volante pisou no freio – mas o artilheiro... Um mês depois, às vésperas do penúltimo jogo, contra o Corinthians em Campinas, apareceu na Gávea com uma grave queimadura no pé esquerdo e foi vetado. Os companheiros cobraram a promessa, e Adriano, culpado, quis entrar em campo de qualquer maneira. Foi a muito custo vetado pelo médico José Luiz Runco. A trinca na harmonia do grupo só desapareceu com o título.
Graças também ao fato de que os créditos do Imperador são muitos. Ídolo de boa parte dos jogadores – também pelas vitórias fora de campo, nos bailes da vida –, ele posou de líder como nunca fizera antes, em qualquer clube. Em novembro no Mineirão, por exemplo, na hora de entrar em campo para enfrentar o Atlético Mineiro, o time reuniu-se para a oração final – a tal corrente. O normalmente lacônico Adriano surpreendeu ao pedir a palavra e, numa quebra de protocolo, ir para o meio da roda. O discurso foi incendiário. “Cada um de nós é o que é, e nada é por acaso. Eu não sou o Imperador por acaso. Nasci pra vencer. E quero ser campeão brasileiro. Confio em cada um de vocês”, pregou o atacante, para em seguida dar um tapa no peito de cada um dos companheiros, e agarrar a camisa que vestia, até quase rasgá-la. “Temos que honrar esta camisa aqui”, gritou.
Inesperado até para o mais inflamado ufanista, o título muda o status do clube, que na última década e meia reduzira sua hegemonia a um patamar regional, e ajuda a dissipar algumas nuvens eternamente ameaçadoras no céu vermelho e preto. A começar pela conta bancária, que tinha em seu tom rubro algo muito mais negativo do que as listras horizontais que ocupam metade da camisa do clube.
Já há resultados práticos. O contrato com o grupo Azaléia/Vulcabrás, que fez da Olympikus a fornecedora do material esportivo rubro-negro, apresentou promissor rendimento extra. Em seis meses, foram vendidas 1 milhão de camisas oficiais. Como o clube recebe R$ 8 para cada unidade, terminou o ano R$ 8 milhões menos pobre. O sucesso inédito – nem nos dourados tempos de Zico o Flamengo conseguiu ser campeão estadual e brasileiro no mesmo ano – também fez pipocar propostas para o futuro. Até a Petrobras, que rompeu a parceria de 25 anos no fim de 2008, acena com a possibilidade da volta.
Todo esse dinheiro, aliás, é muito bem-vindo, porque o buraco das dívidas segue assustador. Em 2009, o passivo ultrapassou os R$ 350 milhões e o clube ainda tem uma lista de investimentos importantes a realizar: a conclusão do centro de treinamento (o Ninho do Urubu tem estrutura etío-pe), as muitas reformas necessárias à mal-conservada sede da Gávea e a manutenção do time no padrão de um campeão brasileiro são agendas ainda por cumprir.
O momento é positivo, e ninguém quer correr o risco de assumir a responsabilidade por um declínio. O clube teve uma de suas eleições mais concorridas, realizada exatamente um dia após a conquista do hexa. Apesar da disputa equilibrada e do excesso de candidatos – estavam no páreo Patrícia Amorim, Delair Dumbrosck, Clóvis Sahione, Plínio Serpa Pinto, Pedro Ferrer e Lysiuas Itapicuru –, o futebol passou batido no debate. Os candidatos fizeram um acordo de cavalheiros, se comprometendo a evitar comentários ou promessas que pudessem tirar a ascendente equipe rubro-negra do rumo. Com o título, o tom foi mantido.
Eleita, a presidente Patrícia Amorim – ex-nadadora do clube, hoje vereadora no Rio pelo PSDB – contou com o apoio maciço do esporte olímpico rubro-negro e tem, entre as forças que a sustentam, os ex-presidentes George Helal e Luiz Augusto Veloso. Na votação, bateu por 792 a 699 o empresário Delair Dumbrosck, inquilino da cadeira de presidente quando do hexa – Márcio Braga passou o ano licenciado.
Nos primeiros dias, Patricia adotou um estilo cauteloso. Manteve no cargo o vice de futebol, Marcos Braz, e articulou pessoalmente a permanência do técnico Andrade, um dos protagonistas do hexa, que ameaçava sair se não recebesse substancial aumento salarial. Adriano fica até a Copa e a base do time campeão mudará pouco. Mas rubro-negros das mais variadas correntes sabem que, para as batalhas da Libertadores, não é suficiente. Assim, o próximo capítulo já tem título: planejamento, uma eterna fraqueza.
No fundo, o Flamengo sabe que o título nacional teve uma boa dose de sorte e da conjunção de fatores que nem sempre se unem. Mas, diante da surpreendente chegada à terra prometida em 2009, os rubro-negros passaram a acreditar – biblicamente – que ir além tornou-se possível novamente. Não deixa de ser um Flamengo de roupa nova.
Nenhum comentário:
Postar um comentário